Órfã de amigos. É assim que me sinto depois da partida do João e do Fernando. Nos deixaram em épocas diferentes, mas o que eles sempre tiveram em comum era o fato de serem excelentes motoristas. Ambos sempre me ajudavam com as filmagens que faziam em suas viagens cotidianas sempre flagrando algo de errado, omissões, infrações, comportamentos agressivos de outros motoristas e gentilmente me cediam as imagens e fotos para as minhas palestras em colégios e empresas. Ambos deixaram esposas, filhos, parentes e amigos órfãos assim como eu. Ambos perderam a vida para a violência no trânsito e recuso a referir-me a eles como estatísticas.
Fernando
O Fernando era um motociclista de primeira, mas também dirigia um caminhão de entrega de gás. Cerca de uma semana antes de morrer pela imprudência de um motorista embriagado comentou comigo, indignado, que por pouco ele e a esposa não tinham se ferido gravemente e até falecido pela imprudência de um motorista na rua das Missões.
Usou a direção defensiva que ele tanto prezava para salvar a própria vida e a da esposa. Só que uma semana depois o Fernando não teve como fazer nada quando um motorista embriagado que vinha fazendo zigue zague em alta velocidade pela rua Bahia colidiu contra a moto que ele conduzia.
A esposa levou muito tempo para se recuperar das sequelas físicas. Das sequelas emocionais e psicológicas nem ela e nem o filho pequeno conseguiram ainda.
Confesso que é um choque quando você lê a notícia e está lá o nome dos seus amigos. Imagine para quem é familiar e convive direto com eles.
João
O João era daqueles caras gente boa demais, sotaque paranaense forte, tinha na pescaria não sei se um hábito, um hobby ou uma paixão. Gostava de carros, de dirigir de forma segura e de fazer brinquedos para o filho.
Precisava ver a felicidade do pequeno Otávio quando o pai fez dois cataventos no guidão da bicicleta! Ou quando com um pedaço de plástico conseguiu reproduzir o som de motocicleta conforme o pequeno pedalava.
Gostava de lavar os carros aos finais de semana e mostrar como eles ficavam brilhando com a mistura de detergente e querosene.
O João tinha o hábito de filmar todas as saídas com o carro. De fundo sempre uma canção ou hino da igreja.
Tantas e quantas crianças nas escolas e adultos nas palestras que eu ministrava nas empresas assistiam os vídeos com os flagras que o João fazia no trânsito. Muitos desses vídeos eu ainda trabalho com os meus alunos em processo de habilitação ou já habilitados para que conheçam bem as técnicas de direção preventiva.
Mais parece que o João era campeão das frenagens de emergência para evitar colisões traseiras quando algum motorista cortava a sua frente, para evitar machucar ciclistas na contramão e as crianças que corriam na frente do carro.
Ah, meu amigo, eu nem acreditei quando li o teu nome na notícia de que o teu Prisma tinha batido de frente com um caminhão! O mesmo carro de tantas viagens a outros estados feitas com tanta segurança e tranquilidade prá ti e para a tua família!
Assim como o Fernando tu me deixou órfã de amigo, João!
Adhemar
O Adhemar foi um dos professores que tive na época da graduação em Segurança no Trânsito e assim como o professor Márcio Pinheiro também perderam as suas vidas nas vias. Profissionais experientes no trânsito, motoristas que eram professores de direção defensiva e que formavam outros professores e bons motoristas.
O professor Adhemar viajou a trabalho. Foi de avião, mas no aeroporto o aguardava o motorista que o levaria até o local de uma palestra sobre trânsito seguro. Em um cruzamento teve o carro interceptado por outro em alta velocidade que colidiu bem do lado da porta onde estava o professor Adhemar. Ele não resistiu e partiu.
Nesses anos todos desde que comecei a dedicar a minha vida à formação de cidadãos para o trânsito perdi as contas de quantas vidas foram riscadas da minha como resultado de uma colisão.
Eu também não aguento mais perder amigos e familiares para a violência no trânsito e ter que conviver com o fato de que os bons morrem jovens e nos deixam cedo demais! Me sinto órfã de todos eles e sigo com a certeza de que a cada vida roubada no trânsito por conta da violência, da imperícia, da negligência e da imprudência todos nós nos tornamos órfãos.
Órfãos
Seguimos vivos pela metade e órfãos de pais, mães, irmãos, maridos, esposas, amigos como esses que perdi, e até órfãos de desconhecidos.
Nenhuma morte é aceitável e nem deve servir para comemorar quando as estatísticas apontam para baixo porque seguimos órfãos de ações relâmpago e discursos vazios que se inflamam na hora de entregar flores aos órfãos da família. Isso comove, mas precisamos de mais!
Órfãos de uma Justiça coxa e claudicante que nunca chega e encontra nos recursos dos recursos dos recursos uma pedra de tropeço.
Somos todos órfãos do silêncio dos réus que ainda tentam colocar a culpa nas vítimas enquanto inventam ardís para que não se toque mais no assunto e a memória coletiva se apague logo.
Para nós que ficamos, conviver com a dor e a saudade é rotina diária buscando motivos para seguir em frente sem se revoltar e torcer para que não sejamos o próximo.
É, meus caros, a cada morte no trânsito ficamos todos órfãos!

Márcia Pontes é escritora, colunista e digital influencer no segmento de formação de condutores, com três livros publicados. Graduada em Segurança no Trânsito pela Unisul, especialista em Direito de Trânsito pela Escola Superior Verbo Jurídico, especialista em Planejamento e Gestão do Trânsito pela Unicesumar. Consultora em projetos de segurança no trânsito e professora de condutas preventivas no trânsito. Vencedora do Prêmio Denatran 2013 na categoria Cidadania e vencedora do Prêmio Fenabrave 2016 em duas categorias.