A ligação Velha-Garcia é uma obra estrutural complexa, demorada (levaria um tempo estimado em 10 anos) e tão cara que sequer entrou no rol das obras executáveis do Plano de Mobilidade Urbana de Blumenau de 2017. Alvo de debates políticos, técnicos e das promessas de campanha, está orçada em cerca de R$ 350 milhões, o que representa 50% do orçamento global do Plano de Mobilidade, de 8 a 10 vezes mais que o custo de uma nova ponte sobre o Rio Itajaí-Açu.
O projeto original da década de 1970 cria um anel viário periférico com túnel e estima desviar até 30% do tráfego pelo Centro de Blumenau. Desde que a Prefeitura anunciou em live o plano B (alargar a Rua Willy Henkels, patrolar, colocar macadame, tubulação, contenção de encostas, sinalizar e abrir à circulação de veículos por uma estrada vicinal de terra) as opiniões se dividem. Parte da população comemora o improviso viário, políticos já disputam a paternidade da criança e outra parte espera ouvir mais os geólogos, profissionais de arquitetura, planejamento urbano, viário, engenharia (inclusive de tráfego) e ambientalistas.
Na coluna de hoje, a gente atualiza dados técnicos de 2008 para cá para ampliar a leitura da proposta, cujo projeto detalhado ainda não foi apresentado à população.
O antes e o depois
Quando se fala do antigo trajeto que era feito da Velha pela Rua Bruno Ruediger, passando pela Rua Willy Henkels até a Rua Antônio Zendron, as falas se enchem de saudosismo. Há quem diga que encurtava cerca de 10 quilômetros de distância desviando do trânsito do Centro. Até que em 2008 as consequências dos eventos climáticos tornaram a via intransitável e interditada por questões de segurança.
De lá para cá, só as lembranças permanecem inalteradas: dos cerca de 6 quilômetros de extensão, tirando uma parte da Velha onde há manutenção e é transitável, o restante tem, pelo menos, uma dezena de pontos extremamente críticos que requerem maior rigor técnico: trechos onde carros não passam, partes em que a calha do ribeirão invadiu a pista, geomorfologia do solo desfavorável, deslizamentos, muitos barrancos e instabilidades de encostas. Será necessário reconstruir toda a extensão da via com drenagem pluvial e as contingências podem tornar o remendo ainda mais caro.
Como será o plano B
O plano B da Prefeitura de Blumenau é investir R$ 2 milhões para tornar os cerca de 6 quilômetros da via que vai da Rua Bruno Ruediger, passando pela Willy Henkels até a Antônio Zendron transitáveis por uma estrada vicinal de chão batido. As máquinas já estão patrolando os trechos menos afetados e mais conservados, mas os pontos mais críticos que comprometem a viabilidade estão adiante: ao lado de onde tem uma cachoeira com queda de 40 metros, o local onde a calha do ribeirão invadiu a pista, no início da Antônio Zendron, dentre mais de uma dezena deles. Será aberta licitação para contenção das encostas, proteção próximo a barrancos, obras de drenagem, alargamento da via e outras modificações estruturais.
A iluminação em todo o trecho de 6 quilômetros é outro ponto fundamental em que se discute se haverá cabeamento aéreo ou não, seja por questões de fixação segura dos postes ao solo ou mesmo pela possibilidade de furto de parte da fiação, um problema recorrente até em locais mais urbanizados como a Via Expressa e a Ponte do Badenfurt.
A engenharia avançou muito e facilita a busca de soluções, mas uma coisa é fato: o trecho que liga a Velha ao Garcia, que são o segundo e o quinto bairros mais populosos de Blumenau, respectivamente, não é tão simples assim de se mexer por uma série de fatores que vão desde a topografia acidentada às condições de solo propensas a deslizamentos e outros acidentes geológicos. Se não houver rigor técnico, corre-se o risco de que o improviso viário mais tarde seja fonte de dores de cabeça desnecessárias tanto para o município quanto para quem vai utilizar aquela via. Sobretudo nas questões de segurança.
Não se trata só de vontade política
Muito se ouviu que a abertura da ligação Velha-Garcia ao tráfego é uma questão de falta de vontade política, mas as questões técnicas foram as que mais pesaram ao longo dos anos para não se investir na reabertura de uma via rural cravada em área de risco potencial. Estudos técnicos que estimam o volume e fluxo de tráfego, geração de demanda, possíveis limitações de capacidade da via, de circulação, acesso, ambiente urbano, geometria da via e composição do tráfego por tipo de veículo são alguns descritores fundamentais de estudos de engenharia de tráfego, aos quais a população não costuma estar familiarizada. Mais opções de deslocamentos é uma necessidade, a população precisa, quer, apoia, mas não tem a menor ideia de como isso vai ser feito e dos seus impactos imediatos e futuros.
Para se restabelecer a circulação dessa via 12 anos depois, outras questões técnicas não podem ser ofuscadas pelo entusiasmo, tais como: os raios de curva, as inclinações, curvaturas, fluxos conflitantes, pontos críticos de acidentes, a dimensão dos riscos climáticos e ambientais e um projeto detalhado, o que ainda não foi apresentado à sociedade. Tampouco os detalhes dos tipos de obstruções laterais, extensões de declives ou aclives, presença de superelevação, sobre-largura e visibilidade disponível. Não importa se a rua já existe: são detalhes que precisam ser demonstrados com muito rigor técnico para se não se cair na ilusão de que é só patrolar, espalhar o macadame e conter os barrancos que está tudo resolvido.

Frota não é mais a mesma de 2008
De 2008 para cá, a frota de veículos em Blumenau aumentou 56% e isso vai impactar diretamente as condições de circulação sobre a via. Em 2008, eram 173.978 veículos em circulação na cidade; em 2020 são 270.827 (quase 100 mil veículos a mais). Analisar os números da evolução da frota ajuda a compreender e a estimar, inclusive, a composição do tráfego por tipo de veículo que vai transitar por aquele local que antes de 2008 já tinha vulnerabilidades.
Em 2008, a frota de automóveis e utilitários era de 114.523 e em 2020 saltou para 175.037; a frota de veículos pesados, caminhões, caminhão trator, reboque e semirreboque também cresceu de 8.127 em 2008 para 13.843 em 2020. Em 2008, eram 35.885 motos e motonetas em circulação; em 2020 saltou para 48.090. A frota de caminhonetes (passageiro + carga separada) e camionetas que era de 13.856 em 2008 disparou para 31.091 em 2020. Ainda não se sabe se com a suposta reabertura da via rural não pavimentada alguma linha de transporte coletivo passará por lá, mas é bom lembrar que em 2008 a frota de ônibus e micro-ônibus em Blumenau era de 1.005 veículos e saltou para 1.339 em 2020.
Em 2008, a frota era reduzida e o caminho da Velha ao Garcia uma alternativa pouco incentivada, diferente do status que se quer dar depois que o plano B for posto em prática. A questão é: a estrutura da via aguentará grande circulação de veículos, incluindo os pesados? Gerará uma demanda maior de circulação face ao incentivo para fugir do tráfego do Centro? Será estreita e cheia de curvas como a Bruno Hering (Rua do Morro da Cia)? Será seguro para que veículos pequenos e caminhões ou até mesmo caminhões trafeguem lado a lado e para trafegar em dias chuvosos?
Conhecendo como se conhece as vias de barro alisadas com patrola e como elas costumam ficar após pouco tempo de uso (principalmente depois das chuvas), a manutenção será feita com que periodicidade? Se usará macadame ou pó de brita? Terá buraco na fila esperando para entrar na pista? Perguntas que não podem deixar para serem feitas depois.
Ligação Velha-Garcia de fora do Plano de Mobilidade Urbana
O Plano de Mobilidade Urbana para a cidade de Blumenau (clique aqui para acessar) não é tão antigo assim, mas o relatório final apresentado à sociedade em dezembro de 2017 deixou a ligação Velha-Garcia de fora das grandes obras de mobilidade para os próximos anos na cidade. Das páginas 127 à 131 fala-se em “Avaliação da ligação Velha-Garcia” e como conclusão final recomenda-se avaliar a proposta em revisões futuras do Plano por ser essencial e muito cara. Os próprios engenheiros e técnicos da Prefeitura não consideram improvisos ou gambiarras viárias naquele trecho e um professor de Geologia da Furb engrossou o coro de que é um enorme risco mexer em uma área tão delicada sem que se realize mais estudos.
Como é o projeto original de anel periférico Velha-Garcia
O projeto original da ligação Velha-Garcia inclui a construção de um túnel. No ano de 2017, estudos feitos pelos técnicos da Secretaria de Planejamento demonstraram que o tráfego seria de 1.400 veículos por dia no horário de pico da manhã e 840 no sentido Oeste. Com o túnel construído a partir da Rua Frederico Wolfgang Senior, cruzando pelos fundos do Bom Retiro para sair na Rua Hermann Husher, no Valparaíso, ao lado do antigo Hotel Viena, com as vias bem projetadas, pavimentadas e sinalizadas, a previsão era que diminuiria 11% do congestionamento global da cidade e 52% só no Centro. Seria 15% a menos do tráfego de veículos durante o pico da manhã (cerca de 680 veículos/hora em 2017).
Esses dados constam do Plano de Mobilidade Urbana de Blumenau e são previsões de impactos, caso o projeto original com o túnel fosse concluído. Foram feitos cálculos, modelagens e estudos detalhados de engenharia. No caso do plano B, a meta parece ser encurtar trajeto, mas sem apresentação ainda de nenhum dado ou projeto de engenharia detalhado, já que não se trata de uma rua comum que será patrolada e terá um enorme impacto na circulação e necessidade de segurança.
Acompanhamento e rigor técnico
Realmente, a diferença entre uma obra estrutural definitiva que custa R$ 350 milhões e uma alternativa ao custo de R$ 2 milhões faz muita diferença, mesmo sabendo que uma nem de longe poderia substituir a outra. Mas, uma coisa é certa: a abertura de uma estrada vicinal de chão batido em área de alto risco geológico faz do plano B um improviso viário e não pode ser chamada de ligação Velha-Garcia.
É necessário muito mais acompanhamento e rigor técnico do que entusiasmo: analisar bem a relação custo x benefício, se é tecnicamente viável e seguro aplicar o plano B, preparo para lidar com as possíveis intercorrências, considerar os impactos ambientais, para a composição do tráfego no local, se a via realmente poderá aberta com segurança à circulação e para que mais tarde não se descubra que esses R$ 2 milhões não valeram a aposta no improviso viário.

Márcia Pontes é escritora, colunista e digital influencer no segmento de formação de condutores, com três livros publicados. Graduada em Segurança no Trânsito pela Unisul, especialista em Direito de Trânsito pela Escola Superior Verbo Jurídico, especialista em Planejamento e Gestão do Trânsito pela Unicesumar. Consultora em projetos de segurança no trânsito e professora de condutas preventivas no trânsito. Vencedora do Prêmio Denatran 2013 na categoria Cidadania e vencedora do Prêmio Fenabrave 2016 em duas categorias.