InícioMárcia PontesTrânsito: menos acidentes, mas mortalidade dispara na pandemia, por Márcia Pontes

Trânsito: menos acidentes, mas mortalidade dispara na pandemia, por Márcia Pontes

Nas últimas semanas, o que mais se tem lido em portais de notícias e nas redes sociais é sobre acidentes e mortes no trânsito de Blumenau, seguido de alguns questionamentos do tipo: “o que está acontecendo com os motoristas nessa quarentena?”. Apesar da diminuição na quantidade de acidentes de trânsito entre 19 de fevereiro de 2020 em relação ao mesmo período em 2019, já são 9 óbitos em via pública desde o último dia 18 de abril. Algumas dessas mortes foram provocadas por condutores sob efeito de álcool, de drogas e aqueles que não perceberam os riscos de suas condutas e pagaram com a própria vida ou com a vida de pessoas que amavam. Nesse Dia das Mães, muitas não tiveram o que comemorar. O fator ambiente relacionado ao cenário de pandemia da Covid-19 afeta o comportamento dos motoristas no trânsito? Isso explica uma menor quantidade de acidentes, mas uma disparada na gravidade das lesões e no aumento de óbitos?

Acidentalidade cai, mas óbitos disparam

Quando se compara de 19 de fevereiro a 9 de maio de 2020 com o mesmo período no ano anterior, constata-se uma diminuição na contagem de acidentes atendidos pela Guarda Municipal de Trânsito (GMT). Em 2019 foram 478 abalroamentos, em 2020 caiu para 259; as precipitações (contra o solo, meio fio, buraco, barranco, etc) diminuíram de 346 em 2019 para 234 em 2020. Foram 292 choques em 2019 e 93 a menos em 2020; no ano passado foram 213 colisões com uma queda expressiva para 120 no mesmo período de 2020. Mas, a quantidade de mortes violentas no trânsito disparou desde que começou a pandemia.

De 19 de fevereiro a 9 de maio de 2019, foram registrados pela Seterb/GMT 36 atropelamentos, ou seja, 20 a menos no mesmo período em 2020; foram 19 engavetamentos e 12 em 2020; 7 capotamentos no ano passado e 6 em 2020, o mesmo comparativo para tombamentos. A diferença é que o cenário atual é bem outro, marcado pela pandemia do coronavírus e apelos de todos os tipos pela manutenção do isolamento social sempre que possível. E isso inclui só dirigir quando necessário.

De fato, percebe-se menos veículos nas ruas, mas a violência dos acidentes e o modo agressivo de dirigir dos motoristas assusta, assim como a gravidade dos ferimentos e a quantidade de óbitos. Condutas agressivas, álcool, drogas e direção ceifaram vidas.

Assim como Evanio Prestini poderia ter poupado a vida da Amanda e da Suellen em fevereiro de 2019 se não tivesse assumido a direção depois de consumir álcool (0,72mg/L no etilômetro), dormir ao volante (como ele mesmo admitiu em vídeo após a colisão) e invadir a faixa de tráfego onde estavam as ocupantes do Palio, o Richard, motorista do Audi 5 que consumiu cocaína enquanto dirigia, também poderia ter poupado a vida da Elaine que trafegava inocente na faixa de tráfego dela. O nome disso não é acidente, é crime.

Se o condutor do Hyundai i30 não tivesse consumido álcool antes de dirigir também teria poupado a vida do Fabiano, motociclista que trafegava na faixa de tráfego dele quando o automóvel invadiu e colidiu violentamente. Teria poupado também a vida de um ocupante do automóvel que dirigia e que era seu amigo. O nome disso não é acidente, é crime.

Acidentes não acontecem e não são fatalidades

Na literatura científica da Segurança no Trânsito e que envolve ciências como a Física, a Psicologia Social e a Biomecânica, dentre outras, acidentes não acontecem: são provocados, geralmente por infrações que deram errado. E como o trânsito – caracterizado pelo uso comum do espaço público compartilhado – é a rede social mais antiga que existe e onde tudo e todos interagem, nem sempre aquele que cometeu a infração que deu errado é quem paga a conta sozinho. Muitas vezes sobrevivem sem nenhum arranhão, enquanto inocentes e suas famílias perdem a vida.

Sendo comprovado cientificamente que o álcool altera a capacidade psicomotora dos motoristas, diminui os reflexos, a capacidade de julgamentos e a percepção de riscos, além de ser elemento presente em algumas dezenas de mortes diárias, quando um condutor bebe, consome drogas, dirige e chega-se ao resultado morte, realmente isso é algo que não se poderia prever?

Quando um motorista dirige sem cinto de segurança, acelera para ultrapassar em local proibido, provoca a colisão, atravessa o parabrisas e o seu corpo é encontrado a metros de distância do veículo realmente isso é algo que não se poderia prever? Cabe falar em fatalidade enquanto algo impossível de se evitar, por mais que não consigamos imaginar o tamanho da dor e do sofrimento da família?

Quando um condutor transita pelo acostamento para tentar escapar da fila ou do trânsito lento da rodovia, sabendo-se que trata-se de infração gravíssima multiplicada por 3 justamente pelo potencial altamente lesivo da conduta, ele sabe ou não sabe que está cometendo uma infração? E quando essa infração dá errado porque ele não esperava a colisão com uma carreta ou com um veículo  do tipo plataforma, que é mais longo, mais largo e que tem muito mais pontos cegos do que uma moto ou um veículo de passeio, mas a morte é o resultado? Será mesmo uma fatalidade ou consequência de uma infração que deu errado?

Longe de apontar dedos para quem já pagou muito caro ou de qualquer ranço inquisitório: o trânsito não perdoa erros graves, dolos eventuais, condutas culposas, negligência, imperícia e imprudência e não nos dá segundas chances. Ponto. Ou você percebe os riscos de suas condutas ou vai assumir, de uma maneira ou de outra, as consequências.  

Motoristas ignoram a percepção de riscos

Perceber, identificar e gerenciar os riscos na via é uma regra básica de sobrevivência para qualquer motorista, independente do tempo de habilitação, só que a frase “eu vi ele vindo, mas pensei que ele ia parar” é uma das mais ouvidas pelos agentes de trânsito que atendem ocorrências de colisões. Em algum momento será que o motorista questiona: “e se ele não parar?”. 

Tem motorista que dá seta para um lado e vai para o outro, assim como tem aquele que não dá seta e corta a frente acreditando na habilidade que tem ou pensa que tem e provoca a colisão. Há quem prossiga mesmo numa situação de risco porque “acha” que preferência é direito adquirido quando, na verdade, trata-se de uma prerrogativa de fluidez no trânsito. E de tanto ignorarem a percepção, a identificação e o gerenciamento de riscos no trânsito; de tanto colocarem a própria segurança nas mãos de outro motorista acabam engrossando as estatísticas e tendo dores de cabeça que poderiam ser evitadas.

Assim como não se assina cheque em branco e nem se entrega a senha do banco para estranhos, no trânsito não se deve entregar a própria segurança e a própria vida ao acaso ou a mercê dos outros usuários das vias. No trânsito, não se vê o que se ignora que possa estar lá, e isso inclui placas, ciclistas, motociclistas, pedestres e riscos. Se o motorista admite a existência dos riscos e das condições adversas, ele se antecipa, se precavê, aguça a percepção, age preventivamente e evita o pior.

Pandemia x comportamento no trânsito

As variáveis consideradas em um acidente são: o homem (educação, conduta nos deslocamentos, o modo como respeita ou não as leis de trânsito) o veículo (estado de manutenção), a via (sinalização, manutenção) e o ambiente (cenário em que se dirige). Tudo isso tem relação direta sobre o comportamento das pessoas na via.

O fator ambiente refere-se ao cenário de incertezas e pressões em que estamos vivendo e que afetam a vida e as atividades diárias de todos, seja desregulando o relógio biológico, seja produzindo a ansiedade que leva a excessos que vão desde a alimentação, bebida, fumo, preocupações e tantos outros. Tudo isso acaba respingando no trânsito.

Sem operações de fiscalização trânsito e sem os radares móveis, muitos motoristas se sentem os donos das ruas e passam a se arriscar mais ainda do que se arriscavam antes do cenário da Covid-19: muito mais pessoas dirigindo sem habilitação, com licenciamento vencido, dirigindo depois de usar drogas e consumir álcool, acelerando acima da velocidade permitida, e por aí vai! O resultado acompanhamos diariamente.

A velha fórmula ou o pensamento linear de que menos carros nas ruas é igual a menos acidentes e menos mortes é uma mera especulação, assim como a crença de que “não dá nada” porque as ruas estão vazias em alguns momentos. Pessoas não se transformam como no vídeo do Pateta que desde a década de 1960 assistimos nas aulas teóricas nas autoescolas. Pessoas são o que são e levam para o veículo e para as vias o seu modo de pensar, as suas crenças, os seus traços de personalidade, o modo como respeitam ou não as outras pessoas e as leis de trânsito. Levam a sua agressividade, teimosia, temperamento explosivo ou não para dentro ou para cima dos veículos que conduzem.

O que choca é que em algum momento esse lado oculto que não estamos acostumados a ver nas pessoas acaba se revelando no trânsito e contrastando com o que estamos acostumados sobre elas. Porque trânsito é comportamento individual e social e em cenários tensos, como esse de pandemia, o comportamento muda a tal ponto que não se torna necessário um segundo veículo para que uma colisão seja provocada.

Acidentes de trânsito não acontecem, são provocados, seja pelos outros ou pelo próprio condutor que ignorou os riscos de determinada conduta por não acreditar que aquilo fosse “acontecer” com ele.

A palavra fatalidade trará sempre na sua etimologia a referência a algo derivado do que é fatal, que resulta em morte, mas em se tratando de trânsito nem toda colisão ou morte é algo que não se possa prever.

Da próxima vez que for dirigir perceba, identifique e gerencie os riscos para se antecipar a eles e agir de forma preventiva.

Melhor ainda colocar no painel do carro uma foto das pessoas que ama para lembrar-se de quem está esperando chegar em casa vivo. Quem sabe isso mude a tempo o modo de conduzir para preservar a própria vida  e a dos outros.

Texto escrito por MÁRCIA PONTES

Márcia Pontes é escritora, colunista e digital influencer no segmento de formação de condutores, com três livros publicados. Graduada em Segurança no Trânsito pela Unisul, especialista em Direito de Trânsito pela Escola Superior Verbo Jurídico, especialista em Planejamento e Gestão do Trânsito pela Unicesumar. Consultora em projetos de segurança no trânsito e professora de condutas preventivas no trânsito. Vencedora do Prêmio Denatran 2013 na categoria Cidadania e vencedora do Prêmio Fenabrave 2016 em duas categorias.

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